SOBRE UMA MÃE, ANTES DO DIA DAS MÃES

 Por Aline Midlej (*)

Na mesma noite em que a morte cerebral foi confirmada, ela disse sim aos médicos. Em poucas horas, ele vivia novamente. O coração já leva emoção a outro corpo jovem, assim como o fígado e os rins. As córneas foram os únicos órgãos sem confirmação de destino, naquela mesma noite em que sentiu a maior dor da sua vida. Talvez a maior possível.

Uma semana antes, havia resistido em levá-lo a uma festinha da escola onde trabalha, pois o dedo ainda estava enfaixado por conta de um acidente. Foi sozinha prestigiar outras mães e amigos da comunidade.

Chegando lá, se arrependeu. A alegria das crianças a comoveu e Kaio Guilherme foi encontrá-la. Ele brincava quando simplesmente uma bala atravessou sua nuca. Ela só teve tempo de ouvir o grito do filho, que morreu oito dias depois no hospital.

Mais uma vítima de bala perdida? Nunca é perdida, leitores. Os tiros de confrontos em bairros conflagrados do Rio de Janeiro costumam alcançar os mesmos corpos pretos e inocentes.

Enquanto contamos a superação de mais uma marca trágica da Pandemia - 400 mil mortos - quero contar de uma outra estatística: 100 crianças baleadas na região Metropolitana do Rio de Janeiro, nos últimos cinco anos. Kaio foi o número 100.

As ruas da Vila Aliança, onde Thais Silva ouviu a voz do filho pela última vez, compõem o bairro da capital fluminense em que mais crianças são atingidas por armas de fogo. Os dados são da plataforma Fogo Cruzado.

Conheci melhor essa mãe durante a cobertura na GloboNews, na última terça-feira, quando Kaio foi enterrado. Aquele também foi o dia seguinte a uma noite em que outras nove pessoas morreram, em menos de 12 horas, durante trocas de tiros entre PMs e traficantes, em diferentes pontos do Rio.

Além de criminosos, trabalhadores morreram saindo e voltando do serviço, e a vacinação contra a Covid chegou a ser interrompida em três postos de saúde que precisaram fechar às pressas, nessas regiões.

Outros pais perderam filhos, outras famílias eram devastadas, mais uma vez, pela violência crônica com endereços certos. Mas a coluna de hoje é sobre essa mãe, antes do dia das mães que se aproxima.]

“Quando decidi doar os órgãos naquela noite, só pensei nas outras mães. Elas podiam não passar pela dor que eu senti. Com a chegada do Kaio, aos meus 21 anos, conheci um amor que achava não existir. Essa violência vem de formas tão grotescas. Atinge uma criança numa festa, um trabalhador a caminho do serviço. Isso acontece de repente, mas acontece sempre nas regiões mais pobres há muito tempo”.

Quando conversamos por telefone, na quinta-feira, Thais havia prestado o primeiro depoimento na investigação da morte do filho. E os desdobramentos podem depender do quanto a sociedade sentirá a dor dessa mãe que sempre quis ter filho único, mas agora já não tem certeza.

Em casa, os dois dormiam na mesma cama, “rostos colados ”, confidenciou. As noites têm beirado o insuportável. Uma parte do tempo de luto, hoje, é imaginando a alegria dessas outras mães que viram os filhos renasceram com os órgãos doados de Kaio: “Tenho curiosidade de saber quem são, fica o sentimento de que houve algum propósito nisso tudo”.

De presente essa mãe pede visibilidade e proteção: “Que todas as pessoas de bem estejam livres dessa violência, que sempre atinge inocentes”.

A todas as mães, que são capazes de tamanha solidariedade, feliz dia antecipado. À Thais, minha admiração e respeito mais profundos.

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