A Iniciação do Mestre – Exílio no deserto

 

Por João Alexandre Paschoalin Filho, 33.

 

Em um dia do mês de Nissan, Satan subiu à presença do Altíssimo para admirar o coro dos anjos que louvavam o Eterno. Em certo ponto, o Acusador, que estava do lado esquerdo do trono do Senhor, oposto a Metatron, apontou para baixo e disse ao Santíssimo:

-Vedes meu Senhor, lá está o Teu servo. Ele vem do Oriente, onde foi instruído nos mistérios de Zoroastro; aprendeu a ler a Tábua de Esmeraldas, e foi iniciado nos segredos de Elêusis, Ísis e Mitra.  Ele segue para a Galileia, onde encontrará os seus em Cafarnaum.

- Sim, Eu vejo. A centelha nele é forte e sua Luz transpassa de Yerot à Aravot. Está a percorrer os trinta e dois caminhos, saiu de Malkuth rumo à Kether. 

- Meu Senhor, envia-lhe para o deserto e faça com que seu espírito seja testado, mostre a todos que Ele é como Elias, que hoje habita João. Em breve seu tempo na matéria estará cumprido. Merecerá tal mestre sentar-se à sombra da árvore da vida e comer de seus frutos?

- Tão necessário quanto o intercessor é o acusador. Se assim queres, tendes minha permissão. Cumpra a tarefa para qual Eu o criei, todavia não deverás tu ou os seus atentar contra a vida, pois esta somente a Mim pertence e apenas Eu tenho poder sobre ela.

Foi então que o Eterno designou a Metatron que descesse ao mundo inferior e ordenasse ao mestre que se dirigisse ao deserto. Para descer à matéria, teve Metatron de retornar em Enoch, para em seguida dirigir-se ao encontro do mestre, que estava descansando embaixo de uma figueira.

Ao ver a figura de Enoch a sua frente, o mestre caiu de joelhos, rasgou sua roupa até a altura do peito esquerdo deixando-o nu e disse:

-Vem até mim Enoch, o sétimo na linhagem de Adão, filho de Jared, pai de Matusalém, avô de Noé. Aquele que o Eterno poupou da corrupção da morte e fez conhecer os segredos dos sete céus para sentar-se ao lado direito de seu trono. Enoch que veio a ser Metatron, o anjo mais próximo do Altíssimo, o Anjo Supremo, Divino Porta-Voz e mediador entre o Deus e sua criação. De peito nu e de joelhos eis-me aqui ante sua presença.

-És o mais evoluído entre os homens e sua aura envolve o planeta. Ordenou-me o Eterno que te envies para o exílio do deserto e que permaneças lá, onde passarás por provas e, se prevalecer serás aclamado nos sete palácios, lhe sendo concedido o privilégio do conhecimento da palavra perdida.

 Em seguida, Enoch pediu que o mestre estendesse o braço direito e abrisse sua mão.

 -Concedo-lhe em nome do Supremo este anel de ouro, no qual está gravado o selo de Salomão, o único homem sábio o suficiente para subjugar os setenta e dois daemons, incluindo Ashmedai. Este lhe trará proteção durante a noite, para que nada atente contra sua vida.

De joelhos, com a cabeça curvada em sinal de humildade e temor, o mestre tomou o anel das mãos do anjo e colocou-o em seu dedo anelar direito. Em seguida, orou e agradeceu o Supremo. Ao abrir os olhos, o anjo havia desaparecido. A noite caiu rápido, o mestre fez uma fogueira com os galhos secos da figueira, aqueceu-se e dormiu sob as estrelas.

No dia seguinte, seguiu para o deserto da Judéia. Lá chegando, como o sol estava quente, procurou abrigo em uma caverna e passou lá a noite do primeiro dia.

Na aurora, veio Satan até o mestre sob a forma de uma serpente e deu-lhe um bote em seu tornozelo esquerdo.

-Maldita és tu animal peçonhento, destinado a viver comendo o pó da terra; vá embora e me deixe em paz. Disse o mestre tentando espantar a serpente segurando um ramo de acácia.

- Não podes me afugentar, pois estou aqui em nome do Supremo. Vim para testar-lhe. Tens sabedoria e entendimento acerca das coisas do espírito; mas estes lhes faltam em relação à matéria. A coroa é impossível de ser alcançada pelos homens, pois estes sempre estarão limitados pelas correntes da matéria. Em Kéther não há tempo, nem espaço, nem forma, nem gênero e toda a dualidade se converte em unidade.

- Tu me picaste o calcanhar e seu veneno está a correr pelo meu corpo. Temo que em breve morrerei e não poderei cumprir a tarefa confiada a mim por Elias.

-Nestes que passarás aqui, o visitarei por três vezes. Para que vivas, deverá passar pelos testes que lhe serão aplicados; caso contrário, morrerás pela ação de meu veneno. Dito isso, a serpente deixou o mestre e dirigiu-se ao deserto. O sol já havia se posto quando o mestre fez uma fogueira para se aquecer e passar a noite, todavia, apesar da boa lenha o fogo se mantinha fraco. E foi o final do segundo dia.

No início do terceiro dia, acordou o mestre com as dores do desconforto do pernoite. A fome já afligia, assim como a sede. Ao sair da caverna, encontrou sobre uma pedra farta refeição. Havia pães ázimos, azeite e uma bilha com água fresca. Certo de que este seria um dos testes da serpente, o mestre ignorou os alimentos, sentou-se em posição de lótus e meditou.

Veio então a serpente e interrompendo a concentração do mestre disse:

- Vejo que não tocastes no alimento. Estás com fome e sede e não te alimentastes e bebestes.

-Devo me manter em jejum, pois para manifestar-me no espírito devo suprimir as necessidades da matéria. Assim, não tomei dos alimentos e nem da água a mim oferecidos. Disse o mestre com a boca seca.

Foi então que a serpente tornou a falar: 

-Havia um sábio que desejava compartilhar com o mundo a sua graça. Este refletiu e orou por vários dias no intuito de achar uma forma para tal. Certa vez, ao meio-dia, o sábio recebeu a resposta para a questão que havia feito. Este foi ao campo, cavou uma cova e plantou uma árvore. E o tempo passou e a árvore cresceu e deu o mais doce dos frutos. E estes frutos eram doces como o mel, mas ninguém os colhia. E chegou o dia que o fruto amadureceu e caiu ao chão, e como ninguém passou para tomá-lo, este apodreceu e seus restos foram absorvidos pela terra.

Após o término da história, a serpente retornou ao deserto. E ao final do dia, para se aquecer, o mestre acendeu nova fogueira, todavia apesar da boa lenha, o fogo ainda era brando. O sol se pôs e os luzeiros apareceram nos céus.

A noite transcorria calma enquanto o mestre dormia; todavia o som de trotar de um cavalo o acordou de súbito. Montado no animal estava um leão segurando em sua mão direita duas serpentes sibilantes.

- Quem é você e o que fazes aqui a perturbar meu sono? Disse o mestre levantando rapidamente e tomando posição de defesa.

- Sou Orias, o quinquagésimo nono. Também sou conhecido por Oriax. Sou o governador das trinta legiões e conheço os segredos e as virtudes das estrelas.

- O que fazes aqui?  Tens por intuito me matar?

- Não posso lhe fazer mal, pois o anel que usas lhe protege. Está frio e fui enviado para lhe trazer uma coberta e bebida para que possa se aquecer, passar a noite e não perecer nela. É dito que quem ajuda o justo é colocado no caminho da virtude e tem direito a sentar-se abaixo copa da árvore da vida. Há muito vago pelo deserto e desejo voltar a sentir o gosto fresco de sua sombra. Por isso estou aqui.  

- Tal como disse à serpente, para se atingir o espírito devo suprimir a matéria. Não posso aceitar o que me trouxestes.

- Seja feita então a tua vontade. Disse o leão, cavalgando para o interior da caverna e desparecendo nas trevas.

A noite passou, enquanto Vênus, a portadora da luz, aos poucos era expulsa do firmamento para dar lugar ao Astro Rei. O mestre acordou e se dirigiu para fora da caverna. Sobre uma pedra havia um pequeno banquete composto por pão ázimo, azeite, uma bilha de água e uma porção de cordeiro assado com ervas amargas.

Já fazia onze dias que o mestre havia iniciado o seu jejum, sua mão começava a tremer de forma incontrolável, provavelmente devido a fome e a sede. Foi então que em um ímpeto o mestre derrubou os alimentos no chão e quebrou a bilha de água.

-Por que desperdiças alimento e água se tens fome e sede? Precisa a terra mais destes do que você? Não sabes que quando fores ela aqui continuará? Meditastes acerca dos ensinamentos contidos na estória que lhe contei? Desvendastes os profundos níveis que ela encerra em si? Disse a serpente ao mestre.

-Pois lhe digo serpente, que o sábio que desejava compartilhar ao mundo sua graça é a figura do Eterno que por amor cedeu de si a centelha que deu origem a criação dos universos, representados pela árvore. O fruto é o Homem, o Adão Cadmo, a mais perfeita criação do Supremo Senhor. A sabedoria do homem perfeito era grande e este andava e conversava com Deus no mesmo idioma. Entretanto, para que o Homem pudesse exercer o seu livre arbítrio, o Eterno teve de se afastar deste e apresentá-lo à árvore do conhecimento. Uma mãe severa que não dá liberdade ao seu filho, não cria um filho, mas sim uma manifestação sua. Assim, o Homem teve de cair tal como a fruta da árvore.  Contudo assim como a fruta ao apodrecer tem os seus sucos absorvidos pela terra; assim é o Homem que durante sua vida, iniciando na juventude, passando pela maturidade e encerrando na velhice deve devolver para este plano o seu invólucro à medida que seu espírito volta a ser absorvido pelo Universo, até que um dia atinja o sétimo dos palácios, onde está o trono do Eterno.

- Os anjos do Senhor estavam certos quanto ao seu conhecimento das coisas. Não é à toa que seu nome ecoa entre os planos. Em seguida, a serpente tomou seu rumo e foi embora.

Sentindo-se entediado, o mestre deixou a caverna onde passara a noite e empreendeu uma caminhada pelo deserto. Após algum tempo andando, encontrou uma estrada, por onde passava um comerciante puxando uma pequena carroça carregada com alguns cântaros de vinho.

O mestre não pôde deixar de perceber que o comerciante era velho e tinha grande dificuldade para puxar o carro. Lembrando o que o daemom lhe havia dito algumas noites antes, o mestre desceu a colina e tentou ajudar o velho. Todavia, foi fortemente reprimido por ele.

-Vá embora, estás aqui para me roubar! Não preciso da ajuda de um estranho como você. Deixe que eu leve minha carga por mim mesmo. Este é o melhor vinho que alguém poderá beber e cabe somente a mim colher os lucros de sua venda e não repartirei com você uma caneca deste por ter me ajudado. Venho do Oeste e rumo para o Leste e lá enriquecerei. Suma daqui. 

O mestre, sem entender o que havia acontecido, fez a vontade do velho; subiu novamente a colina e sentou-se sob uma figueira para se proteger do sol enquanto assistia o mascate empurrar sua carroça.

Todavia, sua atenção foi interrompida pelo som de gargalhadas. Estranhando a situação, pois até a pouco encontrava-se sozinho, o mestre levantou-se e, ao seu lado esquerdo havia um homem esguio com cabeça de coruja fazendo chacota do velho.

- És tu então o sábio que todos os setenta e dois estão comentando? Eu sou Amon e tenho o poder de ver as coisas que já foram e aquelas que ainda serão.

-Por que gargalhas do pobre velho? Não vês que está sofrendo embaixo do sol para puxar sua carroça de vinho? Não lhes parecer vil escarnir do pobre?

- O velho vem do Oeste e ruma para o Leste, mas não terminará a sua jornada; pois sofrerá dores no coração e perecerá antes de chegar ao seu destino. O vinho irá se evaporar e sua carne servirá de pasto aos abutres. Ninguém irá dar falta dele. Tanto esforço, e para que? Para nada! Isso não é engraçado para você?

-És uma criatura vil e má. Tuas palavras demonstram o desprezo pela vida daquele homem; todavia, concordo que ele mereceu.

-A maldade que reconheces em minha face, nada mais é que o reflexo da tua; e a compaixão de julgas ter por aquele homem, nada mais é que a tentativa de cobrir as transgressões dele. O homem é cego em suas limitações, não conseguindo percebê-las quando se olha no espelho, todavia; sábio é aquele que enxerga no outro as suas imperfeições e reflete acerca destas. Por que julgas ser tão diferente dele? Afinal de contas, não carregas sobre ti o fardo da certeza e das suas convicções inabaláveis?

O mestre permaneceu em silêncio e voltou para sua caverna. Novamente acendeu o fogo para se aquecer, mas apesar da boa lenha, este ainda pouco queimava.

Durante a noite, deitou-se uma mulher nua ao lado do mestre de forma sorrateira. Seus cabelos negros e longos contrastavam com sua pele pálida; seus seios eram fartos e seu quadril largo. Os olhos estavam pintados de negro e sua boca era vermelha como a carne. Sentindo o calor da mulher ao seu lado, o mestre acordou de ímpeto e ralhou:

-O que é você e por que atrapalhas meu descanso? O fogo está se extinguindo e se este acabar morrerei e minha jornada terá sido em vão. Exclamou jogando mais alguns gravetos na mirrada fogueira.

-Estou aqui para satisfazer-te. Já faz um longo tempo que estás exilado no deserto e nunca conhecestes uma mulher. Sussurrou sentando-se ao lado do mestre.

- Afasta-te de mim mulher, não a tocarei, pois se o fizer, irei pecar. Bradou o mestre saltando para longe da concubina, para em seguida rasgar uma parte de suas vestes e jogar as cinzas da fogueira sobre sua cabeça.

Foi então que a mulher se transfigurou em um ser dotado de três cabeças, uma de homem, uma de touro e outra de carneiro e possuía pés achatados de ganso.

- Eu sou o arquiteto do Templo de Salomão, o rei esquecido de Sodoma. Sou aquele que inspira as artes, a geometria, a astronomia e os ofícios manuais. Também sou a fonte dos desejos do homem e a luxúria.

-Tenho o anel com o selo de Salomão, a mim dado por Elias, não podes fazer mal algum contra mim!

-Achas que não sei disso? Fui aprisionado e forçado a trabalhar para Salomão sob o julgo deste maldito anel. Não o matarei, pois não nos foi dada esta permissão.

- Meu espírito não sucumbirá à vossas palavras, tal como impediu-me de deitar-se com a mulher.

-Seu espírito é forte e sua reputação transcende os níveis dos palácios celestes; todavia não entendes a totalidade das coisas. Achas que o homem procura uma mulher somente para atender suas necessidades luxuriosas? Vejo que ainda lhe falta longo caminho para que compreendas o porquê de estar aqui. Desejo que o entenda antes que sucumbas no deserto.

Em seguida, um dragão entrou na caverna, o daemon subiu em seu dorso, dirigiu-se para fora e sumiu na escuridão, ao mesmo tempo, o mestre jogava gravetos secos na fogueira para mantê-la acesa.

Poucas horas depois, o dia amanheceu e o mestre levantou-se e se dirigiu para o exterior a fim de tomar um pouco de sol. Contudo, como outras vezes, havia sobre uma pedra um banquete composto por pão ázimo, azeite, uma bilha de água, uma porção de cordeiro assado com ervas amargas e um jarro de vinho. 

Apesar da fome e da fraqueza começar a interferir em seus sentidos, o mestre deu de costas ao banquete e saiu para caminhar; precisava entender as aparições dos últimos dias. “Será que estou fazendo algo de errado” indagava-se enquanto caminhava sobre o chão seco e infértil do deserto.

Já estava há algumas semanas no exílio e seus limites físico e mental estavam sendo postos a prova; todavia julgava que nunca antes o seu espírito havia estado tão forte. Foram diversas as tentações pelas quais passou, sendo bem-sucedido em todas. Entretanto, ainda não havia sentido a presença do Eterno.

De forma sorrateira e silenciosa, retornou a serpente e colocou-se a falar com o mestre:

-Vejo que estás fraco, suas mãos e pernas tremem, seus lábios estão ressecados e seus cabelos começam a cair; mesmo assim não provas do banquete que lhe é oferecido todos os dias. Achas assim que terás força para cumprir aquilo que fostes destinado pelo Eterno? Desejas tanto perecer antes? Lembra-te que meu veneno ainda está a correr pelas suas veias e somente a ti caberá o efeito que ele fará em teu corpo. Não tenho a intenção de matá-lo, mas apenas de desafiá-lo e depois instruí-lo. Assim ordenou o Supremo.

-Pode minha carne sofrer pela privação do jejum que me foi imposto; todavia, nem só de pão deve viver o homem, mas sim do seu espírito. Tal como os patriarcas ofereciam suas melhores ovelhas em sacrifício para o Senhor, ofereço a Ele a minha carne e o meu sangue.

A serpente fitou bem a fragilidade do mestre e lhe disse:

-Te darei mais uma chance de entender a sua verdadeira missão, pois o Eterno pediu-me para testá-lo. Porém temo que possas perecer antes disso. Sente-se e escute.

Após o mestre sentar-se sobre uma pedra, a serpente iniciou:

- Um sábio rabino, que estava viajando por dias, chegou a uma pequena vila de nome Basar (בָּשָׂר). Lá estando, encontrou uma viúva e lhe pediu comida. Contudo, a mulher lhe disse que somente poderia oferecer água, uma vez que seus jarros de azeite estavam vazios e não havia suficiente para fazer pão, somente para manter acesas as lamparinas a noite. O rabino aceitou o convite e foi a casa da mulher. Esta lhe deu de beber. O sábio fartou-se com a água e pediu para que pudesse ver um dos jarros de azeite. A mulher trouxe o jarro e o apresentou ao rabino. “Tens somente este jarro em tua casa mulher?” Perguntou o rabino. A viúva disse que fora aquele, havia mais três jarros, no entanto, todos estavam vazios. O rabino olhou para o fundo do jarro e havia menos uma medida de azeite. O sábio abaixou-se, tomou o jarro em suas mãos e derramou seu conteúdo no chão. A viúva em desespero reclamou com o rabino: “já havia pouco azeite e agora que jogastes na terra, não tenho suficiente nem para o pão e nem para minhas lamparinas”. O rabino então respondeu: “Traga todos os jarros em minha presença para que eu os cubra com um pedaço de linho branco cada um”. Assim, os jarros foram trazidos ante ao rabino e havia quatro jarros cobertos por linho. E no primeiro jarro escreveu “esh” (אֵשׁ), no segundo grafou “mayim” (מַיִם), no terceiro foi “avir” (אָוִיר) e no último foi “adamá” (אדמה). Em seguida disse a mulher: “Agora mulher, ide ao poço buscar água para refrescar-me e depois cozinhe pão para mim, pois o meio-dia está chegando e tenho fome”. A viúva, sem nada entender foi ao poço e encheu uma bilha com água e trouxe para o rabino beber e se lavar. “Vá e faça agora o pão mulher e me traga de comer, pois já é meio-dia e tenho fome”. “Mas senhor, os jarros estão vazios e não tenho suficiente para cozer pão” disse a mulher. “Tão vazio quanto os jarros, está sua fé; pois foi o Senhor dos Mundos quem criou a lei universal de Amra e, como servo Dele, a estou cumprindo”. A mulher, sem mais discutir com o mestre dirigiu-se para os jarros a fim de pegar uma medida de azeite para amassar e cozer os pães. Ao remover o linho sobre os jarros, todos estavam cheios de azeite e era o melhor azeite de todos, e era farto e puro; e o número de jarros era quatro e o azeite não acabava quando a mulher tirava uma porção do jarro. Uma medida era retirada, uma medida era reposta. Então a viúva ajoelhou e deu graças ao Supremo; depois preparou os pães e compartilhou com o rabino, que comeram e se fartaram.

Ao terminar o conto, a serpente disse ao mestre: “olhe no bolso de sua túnica e me mostre o seu conteúdo”. O mestre esvaziou o bolso e havia algumas pequenas pedras.

- Coloque as pedras no chão e as separe em quatro pequenos montes, sendo cada qual com o número de pedras referente a este. Disse a serpente.

O mestre então separou as pedras em quatro pequenos montes. No primeiro punhado colocou apenas uma, no segundo amontoou duas, no terceiro despejou três e no quarto foram quatro.

- Diga-me agora, oh mestre, qual a relação entre a parábola e a ação que agora fizestes.

Todavia, a serpente notou que o rabino estava muito fraco e, talvez não conseguisse cumprir aquilo que estava pedindo. Foi então que dois anjos desceram dos céus. Estes lavaram-lhe as mãos e o rosto e lhe deram de comer, pois iria morrer.

Vendo que o rabino estava com suas forças parcialmente recuperadas, a serpente voltou a ter com este:

- Estás com meu veneno em suas veias; todavia não perecerás, pois, tua tarefa neste mundo ainda não está completa. Há muito o que aprender acerca daquilo que o Senhor dos Mundos permite que você saiba. Não entendas isso como vitória, mas sim como uma derrota, pois não conseguistes entender as mensagens ocultas e ensinamentos que lhe foram transmitidos nesses dias. A continuidade de sua vida neste plano nada mais é do que a privação das delícias que aguardam os sábios nos mundos superiores; pois a vida do sábio na matéria deve se extinguir quando ele se reconhece como tal.

Nesse momento, os anjos retornaram aos céus.

- Não compreendo! Privei-me durante todos os dias e noites que aqui passei das necessidades materiais que me foram impostas. Procurei suprimi-las para tornar meu espírito puro e merecedor. Disse o mestre ficando de joelhos.

- Meu caro, não se inicia a construção de um edifício pela sua cobertura, assim como não se chega à Kether sem partir de Malkuth e percorrer todos os trinta e dois caminhos. O Eterno, em sua sabedoria, ao criar o Homem perfeito, primeiro moldou-lhe da matéria, para em seguida lhe dar o sopro da vida. No tempo que ficastes no deserto, renunciou completamente às necessidades de sua carne e, por isso, quase morreu. Não há como atingir a plenitude permitida do espírito se descuidares completamente de seu corpo; pois o Senhor disse que este (o corpo) é o templo onde Ele habita.

O mestre se levanta, toma a bilha d’água que dele estava próxima e dá em longo gole enquanto a serpente continua.

- Os potes de barro da viúva representam o homem, que com o tempo perde o contato com o Divino. Aos poucos este consome o precioso azeite em seu interior, até que este termine e acabe por perecer. Todavia, sem a existência dos jarros o azeite não pode ser armazenado. O mundo em que hoje existes é material e denso. Cabe a você, nesta vida, procurar desvendar seus mistérios e encontrar a presença do eterno em cada molécula; pois o Criador sempre está refletido em sua criação. Se não entendes o básico que lhe cerca, como esperas acessar conhecimentos superiores? Se não compreendes o seu próprio corpo, como pretende entender os mistérios do espírito? Olhe agora para os pequenos montes de pedra que fizestes, que ensinamento estes lhes trazem?

O rabino observou as pequenas pedras dispostas no chão e refletiu acerca do que a serpente lhe havia dito. Após algum tempo, olhou fixamente para serpente e lhe disse:

- Encontrei a sabedoria encerrada naquilo que me dissestes. Matéria e espírito, apesar de parecerem ser antagônicos entre si, na verdade não o são. Estes correspondem apenas a dois pontos opostos na escala de vibração do universo, e entre esses dois pólos se encontram milhões de escalas e modos de vibração. Contudo, assim como a água que bebo precisa da bilha para a conter, o espírito necessita da matéria para abrigá-lo neste plano. As pedras foram divididas em quatro grupos, ou seja, a mesma quantidade de jarros exposta na parábola. Cada um dos montes, assim como os jarros representa um elemento constitutivo da matéria: esh (fogo); mayim (água); avir (ar) e adamá (terra). Ao somarmos a quantidade de pedras, temos o número dez (10) que, ao ser reduzido nos fornece a unidade, a indivisibilidade, a monada essencial, o Eterno. Assim, a base da criação do Supremo, ou seja, o plano mais simples e óbvio por ele criado é aquele que existo, o material.

A serpente fitava o mestre, enquanto este desfazia os pequenos montes formados e com um pedaço de graveto seco desenhou na areia um triângulo e neste dispôs as pedras em seu interior.

- Pois é somente por meio do entendimento da matéria e o alcance do equilíbrio entre esta e o espírito é que e desvendar entender aquilo que nos é permitido a compreender nesta existência, devemos partir dos elementos e ascendermos até chegar à unidade, sendo a matéria, a cada nível, menos manifesta. Contudo, antes de atingir Kether, temos de entender Malkut, para acessar Yesod e, em seguida darmos prosseguimento à nossa jornada rumo à Consciência Universal.

- Sua jornada neste mundo ainda é longa, mas o primeiro degrau da escada foi vencido. Ao aprendiz cabe a investigação dos mistérios da matéria, para somente após isso ser iniciado nos ensinamentos do espírito. O primeiro passo daquele que pretende alcançar a sabedoria é a prática da constância, do equilíbrio e da temperança; pois esta é a trindade sagrada básica daquele que anseia a manifestar sua centelha. Agora, alimente-se com a comida que lhe foi dada, medite acerca do que lhe foi ensinado e desvende os mistérios daquilo que aqui vivestes, pois nem tudo lhe foi revelado.

Dito isso, a serpente se retirou; enquanto o mestre tomava do alimento em cima da pedra. Em seguida, descansou em sua caverna e, no dia seguinte, voltou para a companhia dos doze.

 

(*) João Alexandre Paschoalin Filho, 33.

Cadeira 23 da Academia Campinense Maçônica de Letras





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